Unidade 1 -AULA 3
A HISTÓRIA DA BIOÉTICA
A bioética se
torna essencial porque ela explora questões éticas relacionadas ao início e ao
fim da vida humana, englobando temas como métodos de reprodução, engenharia
genética, transplante de órgãos e pesquisa envolvendo seres humanos.
O legado
hipocrático é amplamente reconhecido como o início da sistematização de normas
sobre a conduta moral dos médicos, embora alguns estudiosos identifiquem nos
registros do Código de Hamurabi, atribuído ao rei Hamurabi por volta de 1700
a.C., os primeiros vestígios de regulação da prática médica. Contudo, as
disposições deste código estavam mais centradas nos aspectos comerciais das
interações entre médicos e pacientes, envolvendo punições e remunerações
vinculadas a ganhos e perdas econômicas.
Por outro
lado, os escritos frequentemente atribuídos a Hipócrates, incluindo o famoso
juramento, delineavam comportamentos e atitudes esperados dos médicos. Estes
escritos estabeleceram normas morais de conduta que os médicos deveriam seguir,
marcando assim o início da ética médica. Entretanto, existe uma distância
considerável entre reconhecer este fato histórico e afirmar que nele reside a
origem histórica da bioética, imaginando sua história como um continuum.
Não há evidências sólidas para apoiar tal afirmação (REGO; SIQUEIRA-BATISTA,
2009).
Considerando
esses pontos e reconhecendo a bioética como um resultado da separação entre
religião e Estado, e da diversidade das sociedades democráticas do século XX,
podemos identificar dois eventos cruciais como marcos do seu surgimento:
Em 1927, Fritz
Jahr introduziu o conceito de bioética em seu artigo "Bioética: uma
análise da ética aplicada a humanos, animais e plantas". Para Jahr, a
bioética representava a ética aplicada a todos os seres vivos. Em 1970, Potter
reintroduziu o termo, mas com uma perspectiva diferente. Ele via a bioética
como uma ponte para o futuro, interpretando doenças, como o câncer, como
manifestações do ambiente. Potter concebeu a bioética como uma ética
contextualizada ecologicamente, uma ciência da sobrevivência. No mesmo ano,
Hellegers utilizou o termo bioética, limitando-o às éticas das ciências da
vida, especialmente no contexto humano. No entanto, foi somente quando Reich
organizou a Enciclopédia de Bioética que o termo começou a ser amplamente
adotado. Em sua definição, a bioética é descrita como "o estudo
sistemático das dimensões morais, incluindo visão moral, decisões,
comportamento e políticas, das ciências da vida e cuidados de saúde, utilizando
uma variedade de metodologias éticas em um cenário interdisciplinar"
(STAPENHARST, 2017).
Apesar de o
termo "bioética" ter tido uma origem com uma abordagem abrangente,
sua definição foi gradualmente limitada após a adoção do neologismo pelo
Instituto Kennedy de Ética nos Estados Unidos. Posteriormente, a palavra passou
a se concentrar nos domínios biomédicos e biotecnológicos, especialmente
relacionados às práticas dos profissionais da saúde. Diante dessa delimitação
conceitual, a bioética ganhou reconhecimento nos anos 1970 até meados dos anos
1990 (PESSINI, 2013).
Um dos
momentos cruciais na evolução da bioética ocorreu fora dos Estados Unidos. Em 3
de dezembro de 1967, Christiaan Barnard realizou o primeiro transplante
cardíaco no Groote Schur Hospital, em Cape Town, África do Sul. Ele retirou o
coração de uma jovem de 25 anos, vítima de atropelamento, e o transplantou em
um paciente terminal de 54 anos. Ele sobreviveu à cirurgia, e a operação foi
amplamente considerada um sucesso pela mídia. Barnard tornou-se uma figura
globalmente reconhecida, aparecendo na capa da revista Time. No
entanto, o desenvolvimento de imunossupressores não acompanhou o ritmo da
habilidade cirúrgica. Infelizmente, o paciente sobreviveu apenas 18 dias,
falecendo de pneumonia (MCRAE, 2009). Apesar da situação, surgiram novas
perguntas: como é possível retirar um coração vivo de uma pessoa que está
clinicamente morta? Quando podemos afirmar que alguém está definitivamente
morto? A morte é um evento ou um processo? Se for um processo, como
determinamos quando ele se torna irreversível?
Uma resposta inicial veio em 1968,
quando o The Journal of the American Medical Association, em 5 de
agosto, publicou o documento "A Definition of Irreversible Coma: Report of
the Ad Hoc Committee at Harvard Medical School to Examine the Definition of
Brain Death" (HARVARD MEDICAL SCHOOL, 1968). Esse documento
estabeleceu os critérios para determinar a morte cerebral. No entanto, não
houve unanimidade de opiniões. Surgiram questionamentos de várias origens –
científica, religiosa e cultural: a vida consciente é a única forma de vida? Se
o cérebro morre, a pessoa também morre?
A introdução
dos critérios de morte cerebral representou um avanço significativo no campo
dos transplantes de órgãos, ampliando consideravelmente o número de potenciais
doadores. O progresso nessa área, que teve início em 1954 com o primeiro
transplante renal bem-sucedido, logo se estendeu para outros órgãos vitais. No
entanto, esse avanço tecnológico trouxe consigo uma série de questões éticas
complexas para a sociedade. Quem deveria ser considerado um doador de órgãos? A
doação deve ser um ato voluntário ou presumido? Deveria haver alguma forma de
compensação para os doadores? E quanto a uma criança, poderia ela ser uma
doadora? Quem deve tomar essa decisão em seu nome? E como devemos encarar a
ideia de conceber um filho com o propósito específico de ser um doador no
futuro?
Essas
perguntas, juntamente com muitas outras, são temas constantes de debates na
sociedade. Embora nem todas tenham respostas claras, a bioética serve como um
guia essencial para abordar eficazmente os desafios relacionados à vida, saúde
e morte dos seres humanos. Por meio da reflexão ética e do entendimento
aprofundado dessas questões, a bioética busca orientar as decisões e políticas
que envolvem o complexo mundo dos transplantes de órgãos e outras questões
médicas cruciais.
Contexto histórico da bioética no
Brasil
O Brasil
desempenhou um papel significativo na promoção e reconhecimento da bioética. Em
2003, a Unesco iniciou a elaboração da Declaração Universal sobre Bioética e
Direitos Humanos, um documento aprovado pelas nações em 2005. O Brasil teve
papel fundamental na construção desse referencial teórico e prático. O país não
apenas se comprometeu em divulgar amplamente o documento, mas também se
envolveu profundamente em sua discussão e aplicação prática nos poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário (BARBOSA, 2010).
Apesar de o
início da bioética no Brasil ter sido considerado tardio em relação ao contexto
internacional, com seu início nos anos 1990 por meio da criação da
revista Bioética pelo Conselho Federal de Medicina, o país
testemunhou um desenvolvimento notável nessa área. Em 1996, foi estabelecida a
Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e atualmente o Brasil conta com
mais de 600 Comitês Locais de Ética em Pesquisa (CEP), além da Comissão Técnica
de Biossegurança (CTNBio) do Ministério da Ciência e Tecnologia, criada em
2005.
Bioética na atualidade
A bioética,
muitas vezes denominada como a "ética da vida", representa a
disciplina que se dedica a estabelecer os limites e propósitos da intervenção
humana na vida. Seu objetivo fundamental é identificar os
valores que podem ser racionalmente considerados como referência e destacar os
riscos associados às potenciais aplicações dessas intervenções. Trata-se
de um campo multidisciplinar que explora dilemas éticos e morais inerentes às
práticas médicas, pesquisas científicas, biotecnologia e outras áreas
relacionadas à vida e saúde humana.
A bioética
busca fornecer orientações éticas para profissionais de saúde, pesquisadores e
sociedade em geral, promovendo a tomada de decisões responsáveis e humanitárias
diante dos desafios que a evolução tecnológica e científica apresentam.
É fundamental
destacar que a bioética está em constante evolução, adaptando continuamente os
princípios éticos já estabelecidos para enfrentar novos desafios decorrentes
das inovações na área da saúde. Esse processo dinâmico envolve a aplicação
criativa e responsável dos valores éticos tradicionais em cenários emergentes,
em que avanços científicos e tecnológicos apresentam questões morais complexas.
Assim, a bioética não apenas respeita os princípios fundamentais, mas também os
aplica de maneiras que sejam pertinentes e significativas para as questões
contemporâneas relacionadas à vida e à saúde humanas.
Por muitos
séculos, a prática da medicina foi marcada por uma abordagem autoritária, com
pouca ou nenhuma autonomia concedida aos pacientes. Além disso, a utilização de
seres humanos e animais em pesquisas foi conduzida de maneira abusiva. Durante
a Segunda Guerra Mundial, os nazistas nos campos de concentração submeteram
inúmeros prisioneiros a experimentações cruéis, um cenário de horror que chocou
o mundo ao ser revelado por imagens. Após o término da guerra, o Tribunal
Militar Internacional em Nuremberg julgou vinte médicos acusados de crimes de
guerra devido a esses experimentos. Dessa experiência surgiu o Código de
Nuremberg, um conjunto de dez princípios éticos que orientam a pesquisa
envolvendo seres humanos.
É essencial
destacar alguns desses princípios éticos do Código de Nuremberg de forma
concisa:
- O consentimento voluntário do ser humano é
absolutamente essencial;
- O experimento deve trazer benefícios para a
sociedade;
- Deve-se basear o experimento em resultados obtidos
com experimentação animal;
- É imperativo evitar qualquer forma de sofrimento
físico ou mental durante o experimento;
- Nenhum experimento deve ser realizado se houver
razões para acreditar em morte ou invalidez permanente;
- O grau de risco aceitável deve ser limitado pela
importância humanitária do problema a ser resolvido;
- Cuidados especiais devem ser tomados para proteger
os participantes do experimento;
- Infelizmente, na época de sua elaboração, o Código de Nuremberg não foi imediatamente incorporado às leis americanas e alemãs, carecendo de força efetiva. Somente nas décadas de 1960 e 1970, com a redação da Declaração de Helsinque em 1964 pela 18ª Assembleia Médica Mundial na Finlândia, esses princípios éticos começaram a ser mais amplamente aceitos e aplicados
Sugestão de artigo científico
ANNAS, G. J.; GRODIN, M. A. The nazi doctors and the Nuremberg Code. Human rights in human experimentation. New York: Oxford University Press. 1992. 371 p.
BARBOSA, S. Bioética no Estado Brasileiro: situação atual e perspectivas futuras. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 2010, p. 25-27. 8 Ibid., p. 28. 9 Ibid., p. 28.
HARVARD MEDICAL SCHOOL. A definition of irreversible coma: Report of the ad hoc committee of the Harvard Medical School to examine the definition of brain death. JAMA. 1968, p. 205; 337-40.
MCRAE D. Cada segundo conta. A corrida pelo primeiro transplante de coração. Rio de Janeiro: Record, 2009, 417 p.
PESSINI, L. As origens da bioética: do credo bioético de Potter ao imperativo bioético de Fritz Jahr. Revista bioética (Impress.). 2013. p. 11. Disponível em: https://revistabioetica.cfm.org.br/revista_bioetica/article/view/784/849. Acesso em: 19 out. 2023.
REGO, S., PALÁCIOS, M.; SIQUEIRA-BATISTA, R. Bioética: histórico e conceitos. In: REGO, S., PALÁCIOS, M.; SIQUEIRA-BATISTA, R. Bioética para profissionais da saúde [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2009. Temas em Saúde collection, p. 13-38. ISBN: 978-85-7541-390-6. Disponível em: https://doi.org/10.7476/9788575413906.0002. Acesso em: 14 jan. 2024.
STAPENHARST, F. et al. O conceito de moral. In: STAPENHARST, F. et al. Bioética e biossegurança aplicada. Porto Alegre: SAGAH, 2017.
WEINDLING, P. J. The nazi medical experiments. In: The Oxford textbook of clinical research ethics. New York: Oxford University Press. 2008. Cap. II, p. 18-30.
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