sábado, 22 de março de 2025

BIOÉTICA E BIOSEGURANÇA

 

Unidade 1 -AULA 3

A HISTÓRIA DA BIOÉTICA

A bioética se torna essencial porque ela explora questões éticas relacionadas ao início e ao fim da vida humana, englobando temas como métodos de reprodução, engenharia genética, transplante de órgãos e pesquisa envolvendo seres humanos.

O legado hipocrático é amplamente reconhecido como o início da sistematização de normas sobre a conduta moral dos médicos, embora alguns estudiosos identifiquem nos registros do Código de Hamurabi, atribuído ao rei Hamurabi por volta de 1700 a.C., os primeiros vestígios de regulação da prática médica. Contudo, as disposições deste código estavam mais centradas nos aspectos comerciais das interações entre médicos e pacientes, envolvendo punições e remunerações vinculadas a ganhos e perdas econômicas.

Por outro lado, os escritos frequentemente atribuídos a Hipócrates, incluindo o famoso juramento, delineavam comportamentos e atitudes esperados dos médicos. Estes escritos estabeleceram normas morais de conduta que os médicos deveriam seguir, marcando assim o início da ética médica. Entretanto, existe uma distância considerável entre reconhecer este fato histórico e afirmar que nele reside a origem histórica da bioética, imaginando sua história como um continuum. Não há evidências sólidas para apoiar tal afirmação (REGO; SIQUEIRA-BATISTA, 2009).

Considerando esses pontos e reconhecendo a bioética como um resultado da separação entre religião e Estado, e da diversidade das sociedades democráticas do século XX, podemos identificar dois eventos cruciais como marcos do seu surgimento:

Em 1927, Fritz Jahr introduziu o conceito de bioética em seu artigo "Bioética: uma análise da ética aplicada a humanos, animais e plantas". Para Jahr, a bioética representava a ética aplicada a todos os seres vivos. Em 1970, Potter reintroduziu o termo, mas com uma perspectiva diferente. Ele via a bioética como uma ponte para o futuro, interpretando doenças, como o câncer, como manifestações do ambiente. Potter concebeu a bioética como uma ética contextualizada ecologicamente, uma ciência da sobrevivência. No mesmo ano, Hellegers utilizou o termo bioética, limitando-o às éticas das ciências da vida, especialmente no contexto humano. No entanto, foi somente quando Reich organizou a Enciclopédia de Bioética que o termo começou a ser amplamente adotado. Em sua definição, a bioética é descrita como "o estudo sistemático das dimensões morais, incluindo visão moral, decisões, comportamento e políticas, das ciências da vida e cuidados de saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas em um cenário interdisciplinar" (STAPENHARST, 2017).

Apesar de o termo "bioética" ter tido uma origem com uma abordagem abrangente, sua definição foi gradualmente limitada após a adoção do neologismo pelo Instituto Kennedy de Ética nos Estados Unidos. Posteriormente, a palavra passou a se concentrar nos domínios biomédicos e biotecnológicos, especialmente relacionados às práticas dos profissionais da saúde. Diante dessa delimitação conceitual, a bioética ganhou reconhecimento nos anos 1970 até meados dos anos 1990 (PESSINI, 2013).

Um dos momentos cruciais na evolução da bioética ocorreu fora dos Estados Unidos. Em 3 de dezembro de 1967, Christiaan Barnard realizou o primeiro transplante cardíaco no Groote Schur Hospital, em Cape Town, África do Sul. Ele retirou o coração de uma jovem de 25 anos, vítima de atropelamento, e o transplantou em um paciente terminal de 54 anos. Ele sobreviveu à cirurgia, e a operação foi amplamente considerada um sucesso pela mídia. Barnard tornou-se uma figura globalmente reconhecida, aparecendo na capa da revista Time. No entanto, o desenvolvimento de imunossupressores não acompanhou o ritmo da habilidade cirúrgica. Infelizmente, o paciente sobreviveu apenas 18 dias, falecendo de pneumonia (MCRAE, 2009). Apesar da situação, surgiram novas perguntas: como é possível retirar um coração vivo de uma pessoa que está clinicamente morta? Quando podemos afirmar que alguém está definitivamente morto? A morte é um evento ou um processo? Se for um processo, como determinamos quando ele se torna irreversível?

Uma resposta inicial veio em 1968, quando o The Journal of the American Medical Association, em 5 de agosto, publicou o documento "A Definition of Irreversible Coma: Report of the Ad Hoc Committee at Harvard Medical School to Examine the Definition of Brain Death" (HARVARD MEDICAL SCHOOL, 1968). Esse documento estabeleceu os critérios para determinar a morte cerebral. No entanto, não houve unanimidade de opiniões. Surgiram questionamentos de várias origens – científica, religiosa e cultural: a vida consciente é a única forma de vida? Se o cérebro morre, a pessoa também morre?

A introdução dos critérios de morte cerebral representou um avanço significativo no campo dos transplantes de órgãos, ampliando consideravelmente o número de potenciais doadores. O progresso nessa área, que teve início em 1954 com o primeiro transplante renal bem-sucedido, logo se estendeu para outros órgãos vitais. No entanto, esse avanço tecnológico trouxe consigo uma série de questões éticas complexas para a sociedade. Quem deveria ser considerado um doador de órgãos? A doação deve ser um ato voluntário ou presumido? Deveria haver alguma forma de compensação para os doadores? E quanto a uma criança, poderia ela ser uma doadora? Quem deve tomar essa decisão em seu nome? E como devemos encarar a ideia de conceber um filho com o propósito específico de ser um doador no futuro?

Essas perguntas, juntamente com muitas outras, são temas constantes de debates na sociedade. Embora nem todas tenham respostas claras, a bioética serve como um guia essencial para abordar eficazmente os desafios relacionados à vida, saúde e morte dos seres humanos. Por meio da reflexão ética e do entendimento aprofundado dessas questões, a bioética busca orientar as decisões e políticas que envolvem o complexo mundo dos transplantes de órgãos e outras questões médicas cruciais.

Contexto histórico da bioética no Brasil

O Brasil desempenhou um papel significativo na promoção e reconhecimento da bioética. Em 2003, a Unesco iniciou a elaboração da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, um documento aprovado pelas nações em 2005. O Brasil teve papel fundamental na construção desse referencial teórico e prático. O país não apenas se comprometeu em divulgar amplamente o documento, mas também se envolveu profundamente em sua discussão e aplicação prática nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (BARBOSA, 2010).

Apesar de o início da bioética no Brasil ter sido considerado tardio em relação ao contexto internacional, com seu início nos anos 1990 por meio da criação da revista Bioética pelo Conselho Federal de Medicina, o país testemunhou um desenvolvimento notável nessa área. Em 1996, foi estabelecida a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e atualmente o Brasil conta com mais de 600 Comitês Locais de Ética em Pesquisa (CEP), além da Comissão Técnica de Biossegurança (CTNBio) do Ministério da Ciência e Tecnologia, criada em 2005.

Bioética na atualidade

A bioética, muitas vezes denominada como a "ética da vida", representa a disciplina que se dedica a estabelecer os limites e propósitos da intervenção humana na vida. Seu objetivo fundamental é identificar os valores que podem ser racionalmente considerados como referência e destacar os riscos associados às potenciais aplicações dessas intervenções. Trata-se de um campo multidisciplinar que explora dilemas éticos e morais inerentes às práticas médicas, pesquisas científicas, biotecnologia e outras áreas relacionadas à vida e saúde humana.

A bioética busca fornecer orientações éticas para profissionais de saúde, pesquisadores e sociedade em geral, promovendo a tomada de decisões responsáveis e humanitárias diante dos desafios que a evolução tecnológica e científica apresentam.

É fundamental destacar que a bioética está em constante evolução, adaptando continuamente os princípios éticos já estabelecidos para enfrentar novos desafios decorrentes das inovações na área da saúde. Esse processo dinâmico envolve a aplicação criativa e responsável dos valores éticos tradicionais em cenários emergentes, em que avanços científicos e tecnológicos apresentam questões morais complexas. Assim, a bioética não apenas respeita os princípios fundamentais, mas também os aplica de maneiras que sejam pertinentes e significativas para as questões contemporâneas relacionadas à vida e à saúde humanas.

Por muitos séculos, a prática da medicina foi marcada por uma abordagem autoritária, com pouca ou nenhuma autonomia concedida aos pacientes. Além disso, a utilização de seres humanos e animais em pesquisas foi conduzida de maneira abusiva. Durante a Segunda Guerra Mundial, os nazistas nos campos de concentração submeteram inúmeros prisioneiros a experimentações cruéis, um cenário de horror que chocou o mundo ao ser revelado por imagens. Após o término da guerra, o Tribunal Militar Internacional em Nuremberg julgou vinte médicos acusados de crimes de guerra devido a esses experimentos. Dessa experiência surgiu o Código de Nuremberg, um conjunto de dez princípios éticos que orientam a pesquisa envolvendo seres humanos.

É essencial destacar alguns desses princípios éticos do Código de Nuremberg de forma concisa:

  • O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial;
  • O experimento deve trazer benefícios para a sociedade;
  • Deve-se basear o experimento em resultados obtidos com experimentação animal;
  • É imperativo evitar qualquer forma de sofrimento físico ou mental durante o experimento;
  • Nenhum experimento deve ser realizado se houver razões para acreditar em morte ou invalidez permanente;
  • O grau de risco aceitável deve ser limitado pela importância humanitária do problema a ser resolvido;
  • Cuidados especiais devem ser tomados para proteger os participantes do experimento;
  • Infelizmente, na época de sua elaboração, o Código de Nuremberg não foi imediatamente incorporado às leis americanas e alemãs, carecendo de força efetiva. Somente nas décadas de 1960 e 1970, com a redação da Declaração de Helsinque em 1964 pela 18ª Assembleia Médica Mundial na Finlândia, esses princípios éticos começaram a ser mais amplamente aceitos e aplicados

Sugestão de artigo científico

Você ainda pode ler um artigo científico: Revista Novos Estudos Jurídicos de M. O K FERRAZ e J. M. A MEIRELLES, Ética e direito em “uma prova de amor”: análise jurídica sobre a possibilidade do irmão salvador como recurso médico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ANNAS, G. J.; GRODIN, M. A. The nazi doctors and the Nuremberg Code. Human rights in human experimentation. New York: Oxford University Press. 1992. 371 p.

BARBOSA, S. Bioética no Estado Brasileiro: situação atual e perspectivas futuras. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 2010, p. 25-27. 8 Ibid., p. 28. 9 Ibid., p. 28.

HARVARD MEDICAL SCHOOL. A definition of irreversible coma: Report of the ad hoc committee of the Harvard Medical School to examine the definition of brain death. JAMA. 1968, p. 205; 337-40.

MCRAE D. Cada segundo conta. A corrida pelo primeiro transplante de coração. Rio de Janeiro: Record, 2009, 417 p.

PESSINI, L. As origens da bioética: do credo bioético de Potter ao imperativo bioético de Fritz Jahr. Revista bioética (Impress.). 2013. p. 11. Disponível em: https://revistabioetica.cfm.org.br/revista_bioetica/article/view/784/849. Acesso em: 19 out. 2023.

REGO, S., PALÁCIOS, M.; SIQUEIRA-BATISTA, R. Bioética: histórico e conceitos. In: REGO, S., PALÁCIOS, M.; SIQUEIRA-BATISTA, R. Bioética para profissionais da saúde [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2009. Temas em Saúde collection, p. 13-38. ISBN: 978-85-7541-390-6. Disponível em: https://doi.org/10.7476/9788575413906.0002. Acesso em: 14 jan. 2024.

STAPENHARST, F. et al. O conceito de moral. In: STAPENHARST, F. et al. Bioética e biossegurança aplicadaPorto Alegre: SAGAH, 2017.

WEINDLING, P. J. The nazi medical experiments. InThe Oxford textbook of clinical research ethicsNew York: Oxford University Press. 2008. Cap. II, p. 18-30.


Nenhum comentário:

Postar um comentário